quarta-feira, 12 de março de 2008

11- Extraindo um cérebro

A minha saga de problemas dentários vem de longe, desde criança freqüento dentistas.Lá pelos idos dos meus lindos 15 anos, obturei umas 20 cáries, duas em ouro! Anos passaram, canais e coroas foram executadas, placa de bruxismo, limpezas, extração do sizo, tudo ou quase tudo foi feito em minhas arcadas.
Mas agora no alto dos meus quarenta e seis anos uma coroa caiu, provisoriamente deu para colar de novo, mas segundo o diagnóstico do meu irmão, dentista, seria necessário fazer um implante, então formou-se um pool de profissionais dentários para discutir o meu caso. Primeiro uma radiografia. Verificaram que não tenho osso para um implante, uma ponte? Também não, pois aquele dente que poderia segurar o falso é pequeno demais. Por que meus dentes haveriam de colaborar e facilitar a nossa vida? Não, tinha que complicar.
Aí pediram uma documentação, sem imaginar o que era, lá fui eu ao laboratório de radiografia. Passei a manhã tirando raio-X, fotografia de todos os anglos do meu rosto, boca aberta, boca fechada, de frente, de lado, boca arreganhada, molde e sei lá mais o quê.
O resultado foi encaminhado diretamente ao pool, que discutiram, analisaram e chegaram a magnífica conclusão: arranca o que sobrou do dente e coloca um aparelho.
Como não tenho medo de dentista, recebi a notícia numa boa. Arranca e coloca aparelho. Tudo parecia que seria uma cirurgia simples: anestesia, um corte na gengiva, o buticão, balançar o dente, afrouxar a raiz, um puxão e pronto, extrairia o dente, ou melhor, o pedaço que sobrou.
Cheguei na hora marcada, às 13:30 horas de uma quarta-feira. Sentei na cadeira, o dentista abaixou o encosto, de modo que fiquei deitada olhando ora o teto, ora as janelas. Uma sala clara e bem iluminada pelas imensas janelas, que mesmo deitada, podia ver o sol brilhar à minha esquerda num mês de julho atípico, fazia calor mas lá dentro o ar era fresco. Eu, paramentada de babador e guardanapo na mão, ele, de luvas cirúrgicas, óculos, preparando os instrumentos na bandeja; verifica a seringa da anestesia, mas percebo que são vários tubinhos, respirei fundo e pensei: vamos lá, coragem é só um dente, tudo acabará logo.
Uma picada ali, outra aqui, mais uma, outra no céu da boca, que dói pra burro. Fecho os olhos e tento pensar em outra coisa e idealizo umas férias em Cancun, que se esvai na primeira tentativa do dentista.
Sinto empurrar o dente para cima e para baixo, pro lado e uma lágrima de dor escorre.
- O quê que é? Vai chorar agora?
- Não, não, pode continuar, não é nada....
Mais um pico de anestesia e sinto a mandíbula indo para a esquerda e o maxilar para a direita, minhas atms reclamam, fico em silêncio, não podia levar mais uma bronca.
- Merda, não podia arrumar um dente mais fácil de tirar?
Não ouso responder, afinal de boca escancarada só podia rezar e rezei, rezei para todos os santos, fiz promessas a São Longuinho, à Nossa Senhora de Aparecida e nada.
O dentista fica de pé e muda de posição, com um instrumento que penso ser, uma chave de fenda, empurra o dente e sinto a costura do encosto da cadeira penetrar em meu cérebro.
- Caracoles! Não vai sair? - reclama o dentista
As horas passam, mais anestesia, sinto o sol queimar as minhas pernas, já devia ser três da tarde e a luta continua, meu irmão. Ele forçando o maldito dente, o maxilar quase caindo, a cabeça prensada na cadeira, tufos de gazes, anestesia, buticão, chave de fenda, chave inglesa, suas mão esmagando as minhas bochechas e? e nada, não queria sair.
Escuto o barulho do famoso motorzinho de dentista.
- Tá partindo para ignorância, pensei e rezei, é claro.

Lembro da dor do parto da minha filha. Dizem que é a pior dor que se pode sentir, mas pelo menos podemos gritar e xingar quem nos deixou naquela situação, inclusive toda a equipe médica que nos assiste, mas num consultório é só você de boca aberta sem poder falar nada e o dentista equipado de todos instrumentos de tortura.
O sol enfraquece, ele xinga mais um pouco, solto um suspiro profundo de cansaço, era uma luta quase vencida por um mísero pedaço de dente. Suplico que martele, mas ele responde que não pode fazer isto.
O crepúsculo, que não era dos deuses, tinge o céu de vermelho. E a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar... já dizia o Raulzito, anuncia o fim da luta às cinco e meia, hora de Brasília:
- Até que enfim! Ruge o dentista. Está aqui o maldito!
Olho para aquele pedaço infame de osso, tão pequeno sem saber se sentia alegria, ódio ou a felicidade de um parto, mas ele era como um filho indesejado, não quis saber dele, não quis guardá-lo como lembrança.
Senti então, os pontos sendo dados rapidamente, nem pedi outra anestesia, pois queria que aquela tortura acabasse logo, assim como ele. Cirurgia finda, voltou a cadeira em posição normal para que o sangue voltasse a circular em meu corpo e eu não desabasse ao levantar.
Dispensada corri para o elevador onde haviam dois homens e uma mulher. Me sentido um extra-terrestre com o rosto inchado, me justifiquei daquela situação:
- Está na cara que estou saindo do dentista, né?
A mulher deu um sorriso...
- E olha que é meu irmão!
- Nooossaaa, imagine se não fosse?
- Pois é, acho que vingou todos seus traumas de infância. É que eu tirei o seu posto de filho caçula quando nasci.
- Deve ser....
Térreo. Saí correndo para o carro e um choro compulsivo e descontrolado veio à tona. Dirigi de volta para casa. Meus pais vieram me receber à porta, pensei que fosse uma calorosa recepção, afinal nunca fazem isto, mas devido o adiantado da hora, quase 7 da noite, meu pai, meu querido e bom velho pai, me pergunta:
- você trouxe o jantar e o pão de amanhã?
Minha mãe equilibrando-se na bengala, só coração de mãe podia responder isso:
- Sampaio..... vá à M....
Agora, estou com aparelho nos dentes, mas isto... será uma outra história...

Letícia 29/07/2006

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