domingo, 18 de outubro de 2015

Eu-Tânatos

Tédio. Não suporto mais o Jânio. Rendam o Redentor. Arranquem a tocha da Liberdade. Chega de Pão no meu Açucar. Vou comprar um Elefante e levar para o Morro. O Mas pintou os muros de Merda. Quero vomitar do Terraço Itália nas coloridas cabeças paulistanas. Quando o relógio do Nacional arder nos meus olhos, farei acrobacias no ar até cair de cu numa careca brilhante. Crivarei minhas costelas no asfalto, banhando de sangue todos os pés, e num último suspiro, mandá-lo-ei à puta que os pariu, fugindo doida e vandálica.
Será numa segunda-tédio-feira, que movimenta corpos cansados, enjoados de tanto amor de motel. Estômagos entupidos de pizzas e pinga. Olhos vermelhos, míopes, pulmões estourando de gases, mãos decepadas em arames farpados, pés concretos. Segunda sem feiras nem freiras que rezem sobre o meu corpo. Almas atômicas crentes na bomba. Eu só queria ver o cogumelo saindo da panela, subindo ao céu entre luzes, laser e raios, para buscar algum deus, mas a chuva veio antes.
Moro numa metrópole e, mesmo assim, não tenho câncer, ainda não fui atropelada nem alvo de um tiro perdido. Jamais tirei um pedaço de mim no hospital, médicos me salvariam.
Quem tem o direito de escolher a minha própria morte, além de mim mesma? É crime psicopatológico, esquizomaníaco, autodestruidor. É pecado, quando tuas células querem morrer e teus neurônios estupefatos comando teus músculos a apertar o gatilho. Ainda que o álcool escorra dos olhos e a língua ressecada de fumaça perca o sabor, me oferecem o espelho deformado da beleza.
Eros engano e quero Tânatos.
Veneno tem gosto ruim, que me fará vomitar antes que o encontre. Overdoses que trazem sonhos, está em falta no mercado externo da esquina. Uma corda no pescoço não me deixará sensual para esse encontro. Um tiro é másculo e instantâneo, não poderei assistir de camarote à morte. Afogamento me deixará ensopada, não sou frango nem gosto de Iemanjá.

"E se eu morresse amanhã?"

Depois de amar meu último parceiro, ir para Paulista esperar que o Itaú me dê a última hora certa. E como Petrônio voltar às montanhas do meu apartamento verde, regar meu corpo nu de vinho e escolher um rock adequado no micro system: "Daddy, you´re a fool to cry".
O estilete estará preparado na mesa de centro, sobre um lenço de rendas, ao lado de um copo de cristal não encantado. Como se fosse uma pedra preciosa, pegarei de leve e examinarei sua lâmina, que reflete a minha cor, limparei a pele veia e carne. Deixando o sangue estourar na janela escorrendo lento, limpo e viscoso. Com as veias abertas, escreverei na parede branca a última frase vermelha.
E neste estado de plena paz, levantarei os olhos para ver o sol pálido da segunda-feira nascer. O sangue misturando-se ao vinho, cuidando para que não coagule. Perderei os sentidos, sorrirei de prazer da última luz que piscará. O corpo já estremece bêbado como num orgasmo, a cabeça roda num protesto, but I´m full to cry.
Vou. Levitando até cair naquele sono profundo. Entro enfim no Nirvana tão procurado.

Àlvares aves ares.
Azevedo azedo, não beije Cármen.

(Conto publicado na coletânea  Contos Jovens, editora Brasiliense em 1987)